Quando a ignorância pode ser fatal: entre a fake Science e a crise do conhecimento
Por Ana Regina Rêgo
Uma pesquisa publicada pela The Royal Society publishing, em maio de 2019, pelos pesquisadores Henning Hopf, Alain Kreif, Goverdhan Mehta e Stephen A. Matlin já apontava para os riscos e as consequências das narrativas da falsa ciência no seio da sociedade provocando uma suspeição sem precedentes sobre o conhecimento científico.
Para os autores, “os computadores, a Internet e as mídias sociais permitem que cada indivíduo seja um editor, comunicando informações verdadeiras ou falsas de forma instantânea e global. Na era da “pós-verdade”, o engano é comum em todos os níveis da vida contemporânea. A falsificação afeta a ciência e as informações sociais e as duas se tornaram altamente interativas globalmente, minando a confiança na ciência e na capacidade dos indivíduos e da sociedade de fazer escolhas baseadas em evidências, incluindo questões de vida ou morte. Ironicamente, os impulsionadores da ciência falsa são incorporados ao sistema de publicação científica atual com a intenção de disseminar o conhecimento comprovado, no qual a intersecção do avanço da ciência e recompensas financeiras e de reputação para cientistas e editores incentivam o jogo e, no extremo, a criação e promoção de resultados falsificados. Na batalha pela verdade, cientistas individuais, associações profissionais, instituições acadêmicas e órgãos de financiamento devem agir para colocar sua própria casa em ordem, promovendo a ética e a integridade e desincentivando a produção e publicação de dados e resultados falsos. Todos devem se manifestar contra as informações falsas e a ciência falsa em circulação e contradizer vigorosamente as figuras públicas que as promovem. Eles devem contribuir para a pesquisa que ajuda a compreender e combater as informações falsas, para a educação que constrói conhecimento e habilidades na avaliação da informação e para o fortalecimento da alfabetização científica na sociedade”.
Sabe-se que em um nível coletivo, informações falsas podem alterar atitudes e políticas em questões ecológicas, sociais e políticas cruciais e, no extremo, pode colocar populações inteiras em níveis nacionais, regionais e até globais em risco de danos. Por exemplo, a negação da mudança climática antropogênica, rejeitada sem contra evidência como ciência falsa, resultou na perda de aceitação universal do acordo internacional sobre a mudança climática e seu impacto no aquecimento global provavelmente terá consequências desastrosas em todo o mundo no atual século XXI. Em outra frente e de modo efetivo as redes sociais, assim como aplicativos de mensagens, foram usadas para enviar milhões de mensagens com o objetivo de influenciar as atitudes em relação ao Brexit no referendo do Reino Unido de 2016 e opiniões sobre os candidatos nas eleições presidenciais dos EUA em 2016, assim como, nas eleições brasileiras em 2018, temas sobre os quais já tratamos reiteradas vezes neste espaço opinativo.
Uma das questões apontadas pelos autores e que já nos reportamos nesta coluna se refere à dúvida que tanto está na raiz da ciência como da anticiência, visto que provoca a suspeição social sobre os discursos criados a partir de evidências. Para os autores, “um fator crítico é a questão de quem tem autoridade para determinar a confiabilidade dos fatos e fazer julgamentos sobre a veracidade das informações oferecidas. Desde os tempos antigos, aqueles com riqueza, poder e posições hierárquicas elevadas foram tratados como fontes privilegiadas, assim como, alguns indivíduos considerados buscadores abnegados de sabedoria nos domínios da espiritualidade, erudição ou ciência”.
Eles também apontam para a evolução do processo científico dentro do regime de historicidade da modernidade sobretudo, no século XX, quando padrões de evidências foram elevados a patamares altos para produção da confiabilidade do conhecimento. Os autores lembram por exemplo, que “o relatório histórico de 1918 de Richard Burdon Haldane ao primeiro-ministro britânico sinalizou a força da relação em evolução entre ciência e política, com Haldane defendendo o princípio de que os políticos devem ficar fora das decisões sobre financiamento de pesquisas”.
Observam ainda que no atual ambiente comumente denominado de pós-verdade atrelado a uma produção sem fim de desinformação, os impactos na interface entre ciência e sociedade quanto no domínio da própria ciência, são crescentes. Quando se observa os ambientes políticos e midiáticos há uma disseminação de narrativas que colocam a ciência sob suspeição, ao que acrescentamos a história e o jornalismo que também estavam sob o mesmo regime de verdade, o da evidência. E citam Bruno Latour, para quem “os fatos permanecem robustos apenas quando são apoiados por uma cultura comum, por instituições que podem ser confiáveis, por uma vida pública mais ou menos decente, por meios de comunicação mais ou menos confiáveis”. No mesmo viés observam que embora pesquisas sobre a visão do público sobre a confiabilidade dos cientistas produzam resultados que variam com o tempo e lugar, em seu livro de 2017 sobre a ‘morte da expertise’ Tom Nichols descreveu as muitas forças que tentam minar a autoridade dos ‘especialistas ‘.
Ao final do artigo apontam caminhos para o combate à desinformação e à fake Science. Para os pesquisadores a solução para os desafios que o ecossistema da desinformação impõe, “não será alcançada por uma única abordagem ou simples conjunto de medidas, mas exigirá um esforço conjunto de uma ampla gama de atores em todos os setores”.
Para os pesquisadores serão necessários esforços para conter a disseminação de informações falsas por meio das mídias sociais, por meio de modificações em algoritmos de computador que favorecem a ‘tendência’ de histórias sem base factual e o desenvolvimento de ferramentas que ajudam a identificar e desenvolver habilidades no reconhecimento de alegações falsas. A regulação das plataformas digitais é, portanto, um dos primeiros pontos sinalizados pelos autores para conter o ecossistema da desinformação, visto que a autorregulação não tem sido suficiente para minimizar os efeitos do mercado das informações falsas.
Por outro lado, apontam que os cientistas não devem permanecer espectadores na batalha contra a falsificação nas notícias em geral, bem como em seus próprios domínios de especialização. Eles podem contribuir para a compreensão do fenômeno das notícias falsas, que normalmente tem sido estudado em quatro linhas: caracterização, criação, circulação e contra-ataque. É necessário um esforço multidisciplinar para entender melhor como a internet espalha o conteúdo e como os leitores processam as notícias e informações que consomem, bem como as plataformas de mídia social são manipuladas para amplificar histórias específicas por meio do uso de contas falsas e ‘bots’.
No mesmo sentido apontado pelos autores, criamos em 2020 a Rede Nacional de Combate à Desinformação- RNCd Brasil (https://rncd.org/ ) com o intuito de reunir iniciativas de diversas naturezas que trabalham em prol da informação enquanto conhecimento comunicado e combatendo ao ecossistema desinformativo que atua em nosso país.
Para maiores informações sobre a pesquisa referenciada acima acesse: https://royalsocietypublishing.org/doi/10.1098/rsos.190161#d3e587