Postagem dissemina preconceito e ódio racial contra os chineses
Trata-se de mais uma mensagem difamatória contra a China. Pano de fundo são as tensões da guerra comercial
O aplicativo Eu Fiscalizo, da Fiocruz, enviou-nos denúncia de mensagem sobre a suposta índole maléfica do povo chinês. Trata-se de uma peça difamatória, que traz diversas informações inverídicas e outras descontextualizadas, com o objetivo de inflamar os ânimos contra a potência asiática.
A mensagem começa acusando os chineses de mau-caratismo inato:
Qualquer um que já tenha feito qualquer tipo de negócio com os chineses sabe que eles tem um código de ética e moral diferente do ocidental.
Enganar as pessoas, na cabeça deles, não é errado, nem quando criminoso – é apenas um bom negócio, e isso justifica tudo.
Os estudiosos alertam que não há um caráter chinês assim como não há um americano ou brasileiro. A nacionalidade não define a personalidade. Classificações do ser humano pela nacionalidade são sempre arbitrárias e relativas, servindo apenas para alimentar o racismo e a xenofobia. Afirmações genéricas sobre o caráter de qualquer grupo étnico ou nacional costumam dizer mais sobre quem as enuncia do que sobre o objeto da enunciação. A mensagem prossegue, afirmando que tais características seriam o resultado do regime comunista:
Quando flagrados enganando as pessoas, ficam com muita raiva de terem sido pegos, e não com vergonha, nunca. São assim, culturalmente, fruto da política imposta pelo partido comunista. chinês.
Para nós, é deplorável. Para eles, normal.
Quando são pegos, buscam o que chama de “save face”. Algo que permita, por mais fora de propósito que seja, que saiam da situação sem envergonhar a empresa.
Se existe de fato na China um forte sentimento de preservação da dignidade – o chamado save face, algo como “não passar vergonha na cara” em português –, ele se aplica sobretudo ao sentimento de honra diante da comunidade. Isso está relacionado com sentimentos de cunho ancestral e religioso, de responsabilidade diante dos atos pessoais, muito mais do que de fidelidade a empresas ou ao patrão, entidades relativamente recentes num país milenar.
O texto segue no mesmo tom, enumerando outras faces reprováveis do comportamento chinês:
Lembrando, envergonhar é levar prejuízo, perder um negócio. Mentir, enganar, não.
Produtos sao falsificados sem o menor preconceito ou pressão das autoridades.
Reprodução – É fato que a China, oficialmente um país comunista, adotou a economia de mercado no trato comercial. A agressividade da competição é uma marca de todas as economias de mercado, incluindo as maiores potências do planeta. A estratégia de reprodução indiscriminada de produtos de outros países foi o modelo adotado para alavancar a economia chinesa, mas ela vem sendo ajustada à medida que o país adota os procedimentos das instituições internacionais que regulam o comércio.
Na sequência, a mensagem enumera, em tom sensacionalista, alguns itens que seriam costumeiramente falsificados pelos chineses.
Quem já visitou o país conhece os shoppings de knock-offs, e os truques que eles utilizam para driblar as autoridades portuárias dos outros países com o auxílio do governo chinês.
A Huawei é um perigo para as nações livres.
Qualquer país que permita a sua operação corre enorme risco.
Sei que vcs estão pensando em bolsas, roupas, etc.
Não.
Eles falsificam mel.
Carne.
Sim. Carne.
Em 2013 prenderam uma turma lá com 2 mil toneladas de carne falsificada.
Era carne de rato.
Falsificam vinhos, produtos de beleza, cremes para o rosto.
Falsificar medicamentos.
Na BBC reportaram: “These included millions of pills made to look like well known brands used to treat diabetes, hypertension, skin problems and cancer, it said.”
Vc leu certo.
MEDICAMENTOS
Aqui o tom é genérico e francamente difamatório. Casos de falsificação de produtos como carne e medicamentos são rotineiros em diversos países, incluindo o Brasil. A matéria referida, da BBC, foi tirada de contexto. A notícia original, de 2012, reporta que o governo chinês desbaratou uma quadrilha que falsificava medicamentos, prendendo 1.900 falsários.
Carne de rato – O mesmo vale para a informação sobre a carne de rato: o governo chinês desbaratou uma quadrilha em 2013, conforme você pode ler nesta matéria aqui. O tom escandaloso da mensagem que circula nas redes sociais ignora as diferenças culturais e gastronômicas: em diversos países asiáticos e africanos se comem animais como ratos e morcegos. Leia mais sobre isso aqui.
Se a falsificação comercial é obviamente reprovável, é importante ressaltar que tais condutas não se restringem aos chineses. O suspense e o tom de quem revela uma verdade inacreditável, típico das fake news, também está presente nesse trecho, que novamente não apresenta qualquer elemento palpável para embasar as afirmações.
Acusação – A mensagem encerra com uma advertência e um acusação ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB):
E é nesses caras que o Doria, governador de SP, quer que vc confie para produzir uma vacina de teste para vc tomar. É com esse pessoal que o Doria fez um acordo em 2019, antes da pandemia, antes do carnaval que ele promoveu. Um acordo para produzir medicamentos e vacinas para uma doença que não existia.
Desculpem, paulistas, mas vcs não lutaram, para derrubar esse governador ASSASSINO. Ninguém merece o destino que ele desenhou para vcs.
Essa luta não é “só” nas redes sociais.
É no dia a dia, com a família, com os amigos, com colegas de trabalho. As pessoas precisam saber a verdade. (Joe Six)
Nesse trecho a mensagem retoma uma informação falsa que já vinha circulando há algum tempo: a de que João Doria teria feito um acordo para lucrar com a venda de vacinas produzidas pela China. O texto sugere nas entrelinhas que a doença foi criada pela China, para que ela depois pudesse vender a solução. O governador sairia lucrando como intermediário na entrega da cura.
A acusação de que a Covid-19 foi produzida em laboratório pela China carece de provas. Diversas fontes confiáveis já investigaram o assunto, como você pode conferir aqui, na checagem feita pela equipe do Fato ou Fake do G1 em 15 de junho. Também não tem fundamento a afirmação de que o governador de São Paulo fechou acordo para a produção da vacina antes da eclosão da pandemia. A checagem esclarece que o acordo aconteceu em junho deste ano apenas.
Luta ideológica – Em suma, o texto com as afirmações sobre o caráter do povo chinês e o suposto acordo criminoso entre Doria e China é mais uma desinformação criada na luta ideológica que marca a pandemia no Brasil e no mundo. Desde o início do governo Bolsonaro as relações diplomáticas entre Brasil e China têm sofrido, por inépcia governamental, abalos constantes, que ameaçam as relações comerciais, em clara desvantagem para o Brasil, que tem na China o seu mais importante parceiro para os produtos do agronegócio.
Para além da questão estratégica comercial, o Brasil só tende a perder com a disseminação de desinformações baseadas no preconceito contra a cultura milenar chinesa. Outras checagens que envolvem a China e o preconceito contra os chineses já foram feitas pela equipe do Nujoc. Confira mais aqui, aqui e aqui.