Estudo desenvolvido pelo Henry Ford Health System é insuficiente para comprovar o êxito da hidroxicloroquina no tratamento contra a COVID 19
Recebemos, por meio de parceria com o aplicativo Eu Fiscalizo da Fiocruz (disponível para Android e iOS), uma mensagem que circula nas redes sociais acerca do protocolo de tratamento contra a COVID 19 utilizando os medicamentos hidroxicloroquina associada com a azitromicina. A mensagem trata dos resultados positivos obtidos por meio do estudo promovido pelo Henry Ford Health System e divulgado no começo do mês de julho.
O estudo na íntegra pode ser localizado aqui. De acordo com a pesquisa, foi realizada uma análise retrospectiva em um total de 2.541 pacientes hospitalizados entre 10 de março e 2 de maio de 2020 nos seis hospitais do sistema, o estudo constatou que 13% dos tratados apenas com hidroxicloroquina morreram em comparação com 26,4% não tratados com hidroxicloroquina. Nenhum dos pacientes havia documentado anormalidades cardíacas graves; no entanto, os pacientes foram monitorados quanto a uma condição cardíaca rotineiramente apontada como uma razão para evitar o medicamento como tratamento para a COVID-19.
Sobre os pacientes que receberam o medicamento, a grande maioria recebeu o medicamento logo após a admissão; 82% dentro de 24 horas e 91% dentro de 48 horas após a admissão. Todos os pacientes do estudo tinham 18 anos ou mais, com idade mediana de 64 anos; 51% eram homens e 56% afro-americanos.
Ainda em consonância com o estudo, também se descobriu que aqueles tratados apenas com azitromicina ou uma combinação de hidroxicloroquina e azitromicina também tiveram um desempenho um pouco melhor do que aqueles não tratados com os medicamentos, de acordo com os dados do Henry Ford. A análise constatou que 22,4% dos tratados apenas com azitromicina morreram e 20,1% tratados com uma combinação de azitromicina e hidroxicloroquina morreram, em comparação com 26,4% dos pacientes que morreram que não foram tratados com nenhum dos medicamentos.
Quanto aos pacientes que vieram a óbito, o estudo conclui que as mortes estavam comumente relacionadas a doenças subjacentes graves, incluindo doença renal e pulmonar crônica, com 88% morrendo de insuficiência respiratória. Globalmente, estima-se que a mortalidade geral por SARS-COV-2 seja de aproximadamente 6% a 7%, com mortalidade em pacientes hospitalizados variando entre 10% e 30%, de acordo com o estudo. Uma mortalidade de até 58% foi observada em pacientes que necessitam de cuidados em UTI e ventilação mecânica.
Em publicação no site do próprio Henry Ford Health System, é ressaltado a necessidade de interpretar os estudos com cautela, não podendo ser aplicados a pacientes tratados fora do ambiente hospitalar. Além disso, há a necessidade de estudos mais rigorosos para avaliar as seguranças e riscos da eficácia do tratamento da COVID 19 com hidroxicloroquina.
O medicamento é geralmente utilizado por pacientes com artrite, lúpus ou outras condições reumáticas. A sua obtenção nos Estados Unidos, local da pesquisa, é mediante receita médica, assim como no Brasil.
O estudo foi promovido pelo Henry Ford Health System. O Instituto é uma organização de assistência médica abrangente, integrada e sem fins lucrativos na região metropolitana de Detroit. O escritório corporativo fica em One Ford Place, Detroit, Michigan. O sistema de saúde opera quarenta centros médicos gerais e sete instalações médicas especializadas.
Com informações do Projeto Comprova, a pesquisa ganhou impulso após divulgação do site Pleno.News, do dia 03 de julho, falar do estudo em decorrência de uma reportagem do canal estadunidense FOX News.
O Comprova entrou em contato com o diretor do Instituto Questão de Ciência, Carlos Orsi, que avalia a existência de dois problemas nos argumentos apresentados pela pesquisa; um de caráter geral e outro específico do trabalho em questão. De acordo com Orsi, trata-se de um estudo observacional, em que os autores apenas observaram os resultados dos pacientes, sem interferir ou controlar os tratamentos. “Estudos observacionais são logicamente incapazes de provar qualquer coisa. Eles apenas sugerem associações (no caso, entre hidroxicloroquina e menor mortalidade) que depois precisam ser validadas em estudos de intervenção, onde os tratamentos são devidamente controlados”, pontuou.
Ainda com informações do Comprova, o método científico proposto como mais confiável é o ensaio clínico randomizado controlado. Para promovê-lo, os pesquisadores recrutam um grupo de participantes voluntários, realizam uma intervenção e acompanham os efeitos por meses. Há algumas características importantes que um estudo desse tipo deve cumprir para ser considerado bom. Uma delas é a existência de um grupo de controle – ou seja, os participantes devem ser separados em no mínimo dois grupos (um recebendo o tratamento e outro não, por exemplo) para que seja possível fazer uma comparação entre eles. A randomização também é essencial, ou seja, uma alocação aleatória de participantes entre os grupos de controle. Outras características são controle de placebo e duplo-cego (quando, para evitar vieses, nem os pesquisadores nem os participantes sabem quem recebeu placebo).
Outra questão apontada na checagem é que no estudo, os pacientes não apresentaram efeitos colaterais relacionados à medicação. Segundo Estevão Urbano Silva, diretor da Sociedade Mineira de Infectologia: “Não dá para trazer essa conclusão para todos os outros pacientes e para as situações do dia a dia, porque é um estudo com metodologia científica inadequada”, indica o médico.
O infectologista ainda reforça que no momento que a ciência caminha na busca para traçar tratamentos para o novo coronavírus, é muito arriscado acreditar em apenas uma fonte. “Temos que fazer uma avaliação sobre o tema. Tem estudos mais conclusivos falando contra o uso da cloroquina que não adiantou, então temos que nos firmar naqueles estudos que tiveram uma metodologia mais adequada, mais correta”, ressaltou.
O NUJOC Checagem já abordou em momentos anteriores as consequências da administração da hidroxicloroquina, além do posicionamento de uma série de entidades médicas que se colocaram contra o uso do medicamento, conforme alinhamento às recomendações da OMS.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), por exemplo, foi uma das associações médicas a demonstrar tal posicionamento. Em informe veiculado no dia 30 de junho, a entidade confirma seu alinhamento com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a FDA (agência reguladora de medicamentos dos EUA), a Sociedade Americana de Infectologia (IDSA) e o Instituto Nacional de Saúde Norte-Americano (NIH). Os órgãos não recomendam o uso da cloroquina, nem da hidroxicloroquina em pacientes com COVID-19.
O comunicado ainda aponta uma série de estudos conduzidos pela Universidade de Oxford, demonstrando que não houve benefícios clínicos para pacientes hospitalizados. As pesquisas ainda indicam que a administração do medicamento pode aumentar os riscos de arritmia cardíaca:
A associação da hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina foi descrita em estudos observacionais e não trouxe benefícios clínicos. Além disso, os dois medicamentos estão associados ao prolongamento do intervalo QTc no eletrocardiograma, que predispõe à arritmia cardíaca. O uso combinado pode potencializar esse efeito adverso, com eventual desfecho clínico fatal, especialmente em pacientes com doenças cardíacas, uma vez que a própria infecção pela COVID-19 pode causar dano ao órgão. Também se deve levar em consideração que antibióticos não têm indicação em infecções virais; seu uso indiscriminado e inadequado favorece a resistência bacteriana. O potencial benefício clínico do efeito “antiinflamatório ou imunomodulador¨ da azitromicina em pacientes com COVID-19 ainda está por ser comprovado.
No site da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS), em sua folha informativa atualizada no dia 03 de agosto, há considerações que reforçam sobre as recomendações do uso da hidroxicloroquina:
Todo país é soberano para decidir sobre seus protocolos clínicos de uso de medicamentos. Embora a hidroxicloroquina e a cloroquina sejam produtos licenciados para o tratamento de outras doenças – respectivamente, doenças autoimunes e malária –, não há evidência científica até o momento de que esses medicamentos sejam eficazes e seguros no tratamento da COVID-19.
As evidências disponíveis sobre benefícios do uso de cloroquina ou hidroxicloroquina são insuficientes, a maioria das pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento. Por isso, enquanto não haja evidências científicas de melhor qualidade sobre a eficácia e segurança desses medicamentos, a OPAS recomenda que eles sejam usados apenas no contexto de estudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceitáveis.
Nesse sentido, o uso do medicamento é apenas para casos restritos ou de possíveis estudos. Apesar de que as pesquisas produzidas até o momento nenhuma demonstrou a total eficácia da hidroxicloroquina para tratamento do novo coronavírus.