Médico utiliza dados falsos ao tentar deslegitimar a pandemia de COVID-19
Recebemos, por meio de parceria com o aplicativo Eu Fiscalizo da Fiocruz (disponível para Android e iOS), uma mensagem que circula nas redes sociais sobre o médico Djalma Marques afirmar em vídeo que a pandemia por COVID-19 é uma farsa criada com finalidades políticas. Segundo a Universidade Johns Hopkins, a doença já vitimou mais de 772 mil pessoas em todo o mundo. Apenas no Brasil o número chega a 108.536, de acordo com o Ministério da Saúde, até o fechamento desta matéria.
Com doutorado em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Barcelona, o Prof. Dr. Djalma Marques publicou o vídeo no Instagram com a seguinte legenda: “A cada dia vão caindo as máscaras da grande farsa da pandemia!”. Com isso, o médico desconsidera as autoridades e instituições sanitárias mundiais que vêm pautando medidas como o isolamento social, a importância de usar máscara, além dos perigos da automedicação focada em hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina. O vídeo recebeu a indicação da rede social: “Informação parcialmente falsa. Analisada por verificadores de fatos independentes”.
Logo no começo da gravação, Marques afirma ter uma “notícia fantástica”, acerca de uma conferência de médicos na Espanha realizada para a imprensa por um grupo chamado de “Médicos por la Verdad”. Entre os pontos que ele lê no vídeo, ressalta-se o trecho: “Os médicos concordam com os seguintes pontos: as vítimas do coronavírus não superam em número as que morreram devido à gripe sazonal no ano passado na grande maioria dos países. Dois: os protocolos médicos em diferentes países foram alterados para exagerar nos resultados. Três: o confinamento de pessoas sadias e o uso forçado de máscaras não têm qualquer base científica”.
Com informações do projeto Comprova, nenhuma das questões levantadas são verdadeiras. A taxa de letalidade do novo coronavírus, de acordo com estimativa da OMS, atualmente é de 0,6% – o índice vem sendo reavaliado conforme a evolução da doença e estudos sobre ela. Já a da gripe sazonal é de 0,1%. Também não há nenhuma comprovação de que algum país tenha alterado informações sobre a doença, e o confinamento e o uso de máscaras são algumas das poucas medidas apropriadas já conhecidas contra a covid-19.
O médico não só reforçou sua defesa de que a pandemia se trata de uma conspiração com finalidades políticas, como também a prescrição da hidroxicloroquina. Questionado pelo projeto Comprova, sobre a posição da OMS em pedir o cancelamento dos estudos com a droga, ele disse que a organização faz uso “mais que político” da doença. “Meu respeito pela OMS é zero.”
Hidroxicloroquina no combate à COVID-19 – O NUJOC Checagem já abordou em momentos anteriores as consequências da administração da hidroxicloroquina, além do posicionamento de uma série de entidades médicas que se colocaram contra o uso do medicamento, conforme alinhamento às recomendações da OMS.
A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), por exemplo, foi uma das associações médicas a demonstrar tal posicionamento. Em informe veiculado no dia 30 de junho, a entidade confirma seu alinhamento com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a FDA (agência reguladora de medicamentos dos EUA), a Sociedade Americana de Infectologia (IDSA) e o Instituto Nacional de Saúde Norte-Americano (NIH). Os órgãos não recomendam o uso da cloroquina, nem da hidroxicloroquina em pacientes com COVID-19.
O comunicado ainda aponta uma série de estudos conduzidos pela Universidade de Oxford, demonstrando que não houve benefícios clínicos para pacientes hospitalizados. As pesquisas ainda indicam que a administração do medicamento pode aumentar os riscos de arritmia cardíaca:
A associação da hidroxicloroquina com o antibiótico azitromicina foi descrita em estudos observacionais e não trouxe benefícios clínicos. Além disso, os dois medicamentos estão associados ao prolongamento do intervalo QTc no eletrocardiograma, que predispõe à arritmia cardíaca. O uso combinado pode potencializar esse efeito adverso, com eventual desfecho clínico fatal, especialmente em pacientes com doenças cardíacas, uma vez que a própria infecção pela COVID-19 pode causar dano ao órgão. Também se deve levar em consideração que antibióticos não têm indicação em infecções virais; seu uso indiscriminado e inadequado favorece a resistência bacteriana. O potencial benefício clínico do efeito “antiinflamatório ou imunomodulador¨ da azitromicina em pacientes com COVID-19 ainda está por ser comprovado.
No site da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS), em sua folha informativa atualizada no dia 03 de agosto, há considerações que reforçam sobre as recomendações do uso da hidroxicloroquina:
Todo país é soberano para decidir sobre seus protocolos clínicos de uso de medicamentos. Embora a hidroxicloroquina e a cloroquina sejam produtos licenciados para o tratamento de outras doenças – respectivamente, doenças autoimunes e malária –, não há evidência científica até o momento de que esses medicamentos sejam eficazes e seguros no tratamento da COVID-19.
As evidências disponíveis sobre benefícios do uso de cloroquina ou hidroxicloroquina são insuficientes, a maioria das pesquisas até agora sugere que não há benefício e já foram emitidos alertas sobre efeitos colaterais do medicamento. Por isso, enquanto não haja evidências científicas de melhor qualidade sobre a eficácia e segurança desses medicamentos, a OPAS recomenda que eles sejam usados apenas no contexto de estudos devidamente registrados, aprovados e eticamente aceitáveis.
Acerca da prescrição de hidroxicloroquina, o Comprova questionou Djama Marques. “Eu uso a hidroxicloroquina porque ela é segura. Tratei pacientes obesos, hipertensos, diabéticos, grávidas e não tive um caso de insucesso. Quem diz que não pode tem que explicar o porquê. Acho que é um tema mais político do que médico.” E continuou: “A OMS é liderada por um ex-guerrilheiro do partido comunista, que não é médico. Meu respeito por ela é zero”.
Tedros Adhanom, atual diretor-geral da organização, nunca foi guerrilheiro de um partido comunista. Entre 2005 e 2012, foi ministro da Saúde na Etiópia no governo do presidente Girma Wolde-Giorgis, filiado à Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope. A organização política, de esquerda, teve papel crucial no fim do regime socialista de Mengistu Haile Mariam (de 1974 a 1991).
Sobre Djalma Marques e o Médicos por la verdad – Ele é médico com registro no Conselho Regional de Medicina do estado da Paraíba (CRMPB), possui perfil no Linkedin, se descrevendo “sócio-presidente, idealizador e fundador” da BioLogicus, uma empresa de biotecnologia. O texto de descrição do site afirma que a companhia foi fundada em 2004 por Djalma Marques e pela engenheira química Fátima Fonseca.
Registro no Conselho Regional de Medicina de Djalma Marques
Ainda com informações do Comprova, Marques tem se voltado nas redes sociais a postar conteúdos relacionados à covid-19 desde o início da pandemia. A princípio, defendia o uso de máscara e pedia para que as pessoas permanecessem em casa. No fim de julho, porém, se referiu ao objeto como “focinheira”.
Questionado sobre a atitude, o médico afirmou: “Fui um dos primeiros a dizer para as pessoas ficarem em casa e usarem máscara, porque a gente não conhecia nada do vírus. Depois que começamos a conhecer, a gente começou a mudar”. Ele disse ainda que “não existem trabalhos científicos mostrando que o uso de máscara previne ou evita a disseminação do vírus. Agora, existe o contrário, mostrando que não previne”.
No início do mês junho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), reforça que as máscaras “reduzem a incidência de infecções” e recomenda seu uso em locais públicos, como supermercados e farmácias.
Quanto ao “Médicos por la verdade”, a associação surgiu a partir de um movimento criado na Alemanha que tem o médico Heiko Schöning como um dos líderes. Ela reúne pessoas que acreditam, como Marques, que a pandemia não existe. Uma das profissionais à frente do movimento na Espanha é Natalia Prego Cancelo. Em um dos vídeos em seu canal no YouTube, ela aparece à frente de um protesto com menos de 15 pessoas, gritando “Confinamento, nunca mais”.
Com informações do periódico espanhol La Vanguardia, o “Medicos por la verdade”: “São grupos que espalham mensagens que apelam às nossas emoções e por isso se tornam mais virais”, explica Alexandre López Borrull, professor de comunicação da Universidade Aberta da Catalunha “Como está quente e a máscara incomoda, o que você quer ouvir é que ela é inútil. E é essa ideia que circula”, argumenta.
Os criadores de notícias falsas sobre saúde também aproveitam as contradições das instituições. Se o pior momento da emergência sanitária não era obrigatório – por questão de logística pura não era para todos –, para que levá-los agora? “São coletivos libertários que por padrão se posicionam contra as informações oficiais e científicas e se apresentam como uma alternativa ao sistema público de saúde. E em tempos de incerteza, suas mensagens afundam mais. Quando houver vacina, eles vão tentar continuar a criar desconfiança, porque o seu discurso é baseado na ideia de que nos vendemos às empresas farmacêuticas”, prevê o especialista no estudo da desinformação.