Médicos fazem afirmações controversas sobre a Covid-19
Entre elas, os médicos defendem o amplo uso da cloroquina e o fim do isolamento social
O aplicativo Eu Fiscalizo, da FioCruz, enviou à nossa equipe um vídeo que traz várias informações polêmicas sobre a Covid-19. Nele, os médicos Marcos da Amazônia, de Santarém, e Saulo Costa, de Bragança, ambas cidades do estado do Pará, conversam por cerca de uma hora sobre o tratamento da doença, com base na experiência clínica de ambos.
Nos primeiros vinte minutos, eles comentam o uso da cloroquina. Denunciam a ideologia e os interesses políticos que segundo eles contaminaram o debate sobre o medicamento e impediram que muitas vidas fossem salvas. “Ainda tão insistindo que não faz efeito, né? É impressionante”, comenta Saulo Costa. Defendem também a eficácia da cloroquina para casos leves, a partir da experiência clínica de ambos. “Os efeitos colaterais são mínimos perto dos benefícios”, diz Costa.
A informação de que a cloroquina é recomendável para casos leves é inconclusiva e ainda está em análise pela comunidade médica e científica. O Conselho Federal de Medicina só passou a recomendar o uso para casos leves depois da insistência do presidente da República, que é defensor da droga, mesmo sem evidências de sua efetividade.
Vários estudos sobre a cloroquina, como este que você pode ler aqui, apontaram efeitos colaterais perigosos, como problemas cardíacos. O próprio CFM reconhece a excepcionalidade da medida de indicar a droga para casos leves, que deve ser feita a critério médico e com o consentimento do paciente, conforme o parecer n° 04/2020, que você pode ler aqui.
Nos vinte minutos seguintes do vídeo, os médicos comentam as medidas de isolamento social. Marcos da Amazônia contesta os benefícios do confinamento: “Fique em casa, lockdown é horrível! É anticientífico! Essa é a verdade”, assevera o médico.
Segundo Saulo Costa, as mortes de idosos na Europa se deveriam em grande medida à falta de exposição dos idosos ao sol, que acarretaria depressão e baixa imunidade devido à carência de vitamina D e outras vitaminas. Assim, os médicos afirmam que o isolamento contribuiu para o aumento no número de mortos, por causa da baixa imunidade.
A afirmação não procede. Os números comprovam que o isolamento contribuiu para conter o avanço da epidemia e das mortes nos lugares em que foi adotado com efetividade. Esta notícia do site da Folha de S.Paulo mostra que Florianópolis não registra morte por Covid-19 há cerca de um mês. A cidade foi uma das primeiras a adotar o isolamento social de forma rigorosa, como fechamento do comércio e restrição das atividades logo no início da pandemia, em março passado.
No terço final do vídeo, que foi visto segundo o médico Marcos da Amazônia por cerca de 60 mil internautas, eles comentam o apoio do governo Bolsonaro para o uso do medicamento. “Teve que derrubar dois ministros para um terceiro vir recomendar [a hidoxicloroquina]”, lamenta Saulo Costa.
Também nesse momento do vídeo Saulo Costa afirma que viu muitos colegas pegarem a Covid-19, e tem uma hipótese sobre por que não ficou doente. Segundo ele, a razão para sua saúde é o fato de possuir um sistema imunológico reforçado pelas vitaminas que toma diariamente. “Eu tomo complexo vitamínico de A a Z há 28 anos, como antiviral”, explica ele.
A informação não se sustenta nos fatos. O novo coronavírus também mata pessoas saudáveis e sem quadro de baixa imunidade. Os dados disponíveis apontam para uma série de fatores que interagem na evolução da doença, não sendo possível afirmar que o sistema imunológico reforçado por vitaminas impeça o contágio pelo novo coronavírus.
A enfermeira Olívia Maria da Cruz Costa, 32 anos, por exemplo, uma pessoa saudável e jovem, morreu na terça, 02, em hospital de Teresina, no Piauí, vítima da Covid-19, conforme esta matéria do portal Cidade Verde.
Autoridade – O vídeo dos médicos expõe o debate sobe os limites da opinião na área da saúde. Por se tratar de profissionais autorizados a clinicar e que são muito requisitados pela população, suas declarações têm um impacto amplo, baseado no conhecimento e na autoridade. Quando veiculadas em mídias sociais de grande alcance como o Youtube, essas mensagens podem gerar dúvidas e riscos à saúde da população.
A experiência clínica de um médico não autoriza por si só a que se ultrapassem certos limites. Isso porque, como explicam os cientistas, a ciência acontece não só no consultório mas sobretudo na comunidade científica. Não dá para generalizar um caso de sucesso se isso não representa uma tendência consistente.
É o que explica o bioquímico Hernan Chaimovich Guralnik, do Instituto de Química da USP, nesta coluna sobre ciência em entrevista ao jornalista Reinaldo José Lopes, na Folha: “Existe uma diferença brutal entre a posição individual de cientistas e médicos, que é legítima, e o que é consenso sobre uma determinada questão”, explica o bioquímico.
Para chegar ao consenso, são necessários estudos testados e reconhecidos pelos pares, que só então passam a valer como regra.