O jornalismo de mãos dadas com a desinformação
Ana Regina Rêgo
Na última terça, 23, uma entidade denominada Associação de Médicos pela Vida pagou/publicou a veiculação de um Informe Publicitário cujo título era “Manifesto pela Vida” defendendo a adoção de tratamento precoce para a Covid-19, em vários jornais brasileiros de grande circulação tais como: Folha de São Paulo, O Globo, Jornal do Commercio, Correio Braziliense, O Povo, Zero Hora e Jornal Correio, dentre outros possíveis veículos, que foram pagos para publicar desinformação.
O Manifesto de teor negacionista propaga uma das narrativas desinformacionais que mais circularam no Brasil em 2020, o chamado tratamento precoce à base de ivermectina, cloroquina, zinco e vitamina D, itens que chegaram a compor o famoso Kit Covid, distribuído em várias partes do país e atualmente já completamente descartado pelos cientistas e pela medicina de linha de frente, em face das evidências de que tais medicamentos/substâncias não possuem ação profilática contra o novo coronavírus.
O governo atual, cujas estratégias e ações se voltam muito mais para a difusão e circulação do vírus, do que para seu combate, está no momento sofrendo investigações por parte do Ministério Público Federal tendo como foco a divulgação e distribuição de tais medicamentos, que teriam prejudicado as ações de prevenção como uso de máscaras e a política de distanciamento social.
Nesse contexto e no que concerne à temática do tratamento precoce para a Covid-19, passamos o ano de 2020 combatendo informações falsas. A grande maioria construídas em forma de vídeos caseiros, feitos por médicos de distintas especialidades e que embasados em um regime de verdade da experiência e não na evidência científica, terminavam divulgando desinformação sobre tratamento precoce e eficácia de vermífugos, outros medicamentos e até chás e remédios caseiros. A grande maioria foi checada e desmentida pelo jornalismo que, nesse caso, procurou recorrer aos cientistas de linha de frente da atual pandemia da Covid-19, para credibilizar os textos de contranarrativas.
Em setembro de 2020, lançamos a Rede Nacional de Combate à Desinformação- RNCd Brasil ( https://rncd.org ) reunindo agências e projetos de checagem, projetos de divulgação científica e popularização da ciência, coletivos, observatórios, aplicativos, projetos de educação para leitura da mídia, instituições e muitos outros. Em comum: a luta contra a desinformação que se faz ubíqua em nossa sociedade virtual.
Na mesma época ou um pouco antes, alguns veículos de comunicação do grande mercado de mídia se reuniram em um consórcio dos veículos de imprensa para apurar corretamente os dados concernentes à Covid-19: óbitos, notificações e curas.
Já o Projeto Comprova que teve início em 2018, hoje reúne quase 28 grandes veículos de comunicação e tem apoio da Google Iniciative e também do Facebook.
Todas essas iniciativas e muitas outras, nasceram da necessidade premente de combater o fenômeno da desinformação e tentar restaurar de certo modo, o pacto entre a instituição jornalística e o público que ora mantém uma postura de suspeição, quando não de total negação, frente ao jornalismo. A ironia fica por conta do fato de que a maioria dos veículos envolvidos na publicação do tal manifesto pela vida, que mais se parece pela morte, compõem essas últimas iniciativas elencadas.
O fato é que na terça, 23 de fevereiro de 2021, os veículos de comunicação acima mencionados, jogaram todo o trabalho fora e deram às mãos para desinformação, cujos objetivos parecem ser bem diversos da preservação da vida, emprestando a credibilidade do jornalismo para um texto completamente negacionista e desinformativo.
Ao agir deste modo, privilegiando o departamento comercial (nenhuma novidade aqui) em detrimento da redação, da apuração e da necessária prestação de serviço à sociedade, os jornais envolvidos prestaram um desserviço ao jornalismo e ao povo brasileiro, em um momento em que chegamos à casa dos 250 mil mortos por Covid-19, em nosso país.
Mapeamos já há alguns anos, as principais estratégias utilizadas pelos empreendedores do que denominamos, em nosso último livro, de mercado da construção intencional da ignorância, quais sejam: cooptar cientistas, neste caso, médicos, para credibilizar narrativas negacionistas, com o objetivo de plantar a dúvida e assim levar à crenças distintas e que muito se afastam dos fatos e da evidência, e, por outro lado, minar a credibilidade dos lugares que trabalham com a proximidade com o fato e com evidência, tais como o próprio jornalismo e a ciência.
O que leva então veículos de comunicação/jornalísticos a receber pagamento e publicar um informe publicitário que contradiz suas próprias narrativas em busca “ de verdades” sobre a pandemia da Covid-19 ?
Não é insano, colocar o lucro pontual acima de sua própria missão social, acima de seu dever para com a sociedade?
A Folha de São Paulo ainda no dia 23 de fevereiro, publicou perto das 20 h uma matéria intitulada Grupo de médicos defende tratamento sem eficácia comprovada contra a Covid-19 em jornais em que contextualiza todos os pontos desinformacionais do referido manifesto, relaciona as ações do governo e as investigações em cursos e concernentes à questão da divulgação de tratamento precoce para o novo coronavírus, relaciona todos os jornais que veicularam o texto e se insere em tal lista, mas, em nenhum momento faz uma mea culpa, ou, sequer, aponta o grande erro que cometeu.
Para nós, jornalistas que lutamos tanto para preservar os valores de um campo, como para combater a desinformação que tem prejudicado nossa democracia e levado muitas pessoas à morte neste complexo momento de pandemia, é inadmissível tal conduta.
Esperamos que todos os veículos envolvidos no episódio venham a público pedir desculpas por tal conduta, completamente contrária aos propósitos do jornalismo.